Deuses (Don't Take It Personally)

Fonte: Guia dos Cineastas e Actores de Portugal

Projeto como foi apresentado à Netflix


Intenções do autor

a) Declaração de intenções do autor sobre o Tema, Abordagem, Fontes de Pesquisa e Trabalho de Campo a realizar.


Este projeto pretende dar expressão à projeção humana de Deus enquanto solução e desejo de ultrapassagem da questão existencial.

A resposta a essa questão através da criação de um modelo imortal que agisse para além do limitador espaço-tempo, levou à criação de toda uma iconografia que por proximidade cultural designo de Deus.

Este é um modelo aspiracional que através da religião tem enformado a vertente comportamental e através da tecnologia a material – levando ao desenvolvimento de processos e dispositivos de superação nos mais diversos domínios do espacial cósmico ao ínfimo quântico, da biotecnologia à consciência.

Hoje, o estádio deste desenvolvimento é histórico-cronologicamente muito relevante dada a aceleração exponencial de descobertas e tecnologias que se auto potenciam numa espécie de reta final imparável que permitirá ao Homem a assunção desse seu desígnio essencial de superação das suas limitações – ser Deus.

Essa será todavia uma alteração com tal ordem de grandeza que implica o desvanecimento do Ser Humano em prol de Ser Deus - uma espécie de crisálida…

Esta nova realidade implica descartar a motivação e a emoção, em que a ação é inevitável mas não pretende reação, em que os nexos de causalidade deixam de exercer uma moral - do estabelecimento de um tempo de Presente absoluto que talvez possamos designar de estádio meta-meditativo.

São estas as premissas de “Deuses - don´t take it personally”, um projeto que pretende ficcionar sobre esse momento de transição em que os 3 primeiros homens também Deus dão os primeiros passos, definem as primeiras ações, interações e vão construindo um novo ambiente que tende a alargar-se aos seus companheiros de jornada existencial – os restantes Homens.


Este projeto é um desafio que radica numa forte convicção “constatatária”, constatando o que se desenha e vai materializando, pretendendo ter um discurso suficientemente lato e abrangente, mas despretensioso e partindo do quotidiano de forma a suavizar e preparar a entrada numa nova atmosfera.


As fontes de pesquisa são numa perspetiva mais restrita a História do Homem e do Conhecimento e mais amplamente da Vida e da Matéria.

Esta pesquisa está e estará plasmada empiricamente, é o resultado de todas as experiências que desembocaram e desembocarão num conhecimento mundividente – numa mundividência – e nessa perspetiva a Vida e o quotidiano continuarão a ser o Trabalho de Campo.


Proclamando a pertinência deste projeto, refiro uma conversa noturna com um jovem a quem depois de lho explicar me atirou seriamente “mas é um documentário?”


Sinopse

Carmen e Helena, filha e mãe, partilham o desejo de fama.

As suas vidas cruzam-se com as de Vitor e Álvaro.

Álvaro, Vítor e Helena, estabelecem um triângulo de interações em que a emoção e a razão são substituídas por ações que não têm como referência os nexos humanos , refletindo um estádio de transformação do Ser Homem para o Ser Deus.

Carmen é o contraponto humano e a mais lógica candidata a engrossar este grupo de “proto-deus” que vão ter um papel relevante na concretização do seu sonho de estrelato.

O seu sucesso será o palco e a alavanca para difundir uma nova forma de Ser…


Logline

Our species evolution it´s rooted on the overcoming of

existential-space-time limitations.

We share the daily existence of the 3 first Man

who are also already God.


Argumento

d) Guião completo e finalizado do primeiro episódio

            D E U S E S

don´t take it personally

CENA 1  

                                                                                                   

Interior-dia                                    

Quarto de Carmen  

                                  

Música nas alturas.

Muito grande plano dos olhos de Carmen que se movimentam conforme se vai maquiando. Vamos recuando muito lentamente e descobrindo que os olhos estão refletidos no espelho, que Carmen está sentada no seu toucador, até vermos Carmen de costas no seu quarto, em plano geral.

Levanta-se e vai pondo peças de roupa à sua frente e experimentando expressões e poses variadas ao espelho. Carmen procura transmitir a sua multiplicidade e confiança na mensagem que passa ao usar diferentes peças de vestuário, ela sabe o que elas representam e escolhe-as a rigor de acordo com o seu planeamento diário e respetivas interações sociais.

Descrevemos o quarto com o olhar passando por fotos com a sua mãe Helena misturadas com lingerie, chávenas, copos, pratos em cima da cómoda, a cama por fazer, o guarda-fatos a abarrotar e subimos (num movimento circular que vai ligar ao quarto da mãe Helena) até vermos Carmen de cima, no seu quarto como de um mundo se tratasse. Atravessamos a parede lateral e entramos no quarto de Helena.

CENA 2                                                                                                                 


Interior-dia                                                             

Quarto de Helena                                     

Música do quarto de Carmen


Entramos no quarto através da parede divisória com o quarto de Carmen completando o movimento de círculo lá iniciado e descemos sobre Helena que arruma o quarto.

Helena (berra)

PÕE A MÚSICA MAIS BAIXO

Vamos até ao espelho onde vemos o seu reflexo. Olhamos agora de frente para Helena que estática (qual estátua grega) está num momento de pausa na expectativa de ouvir o volume diminuir. Com uma expressão de incómodo e resignação retoma a arrumação da roupa. Uma das peças de vestuário chama sua atenção e a música do quarto de Helena encadeia com a música da memória da sua atuação, 27 anos antes, com aquela mesma peça de roupa, enquanto atuava num palco e era ovacionada pelo público. Essa memória fugaz desvanecesse quase imediatamente e vai para repetir a indicação para Carmen pôr a música mais baixo, quando sente a música a entrar em si e a fazer sentido, iniciando também ela uma espécie de dança em que projeta vestidos, poses e caras, como Carmen tinha feito.

CENA 3                

                                                       

Interior-noite

Casa dos pais de Vítor - cozinha e quarto de Vitor     


COZINHA        

Vemos os pais de Vitor a tomarem o chazinho da noite com bolachas.

Vitor entra na cozinha com as calças mal apertadas, o cinto ao dependuro, dirige-se rapidamente ao fogão ignorando completamente os pais.  Levanta os tachos e observa o conteúdo

Vitor

(seco) A comida está fria…

Mãe

(conciliadora) Já te chamei há meia hora, filho...

Vitor

(irónico agressivo) E se mantivesse o fogão ligado gastava muita luz…

Mãe

A comida ficava seca…

Com maus modos senta-se à mesa e serve-se displicentemente.

Pai

(tenso) Já tens muita sorte da tua mãe te fazer a comida.

Vitor

(zombateiro) Mas foi o pai que fez o chá e as bolachinhas?

Pai

(monocórdico) Não, mas não sou mal agradecido…


Vitor

(afirmativo) Você gostava era de comer um bifinho assim…(levanta o bife do prato para mostrar), mas já desistiu de o pôr em pé, não é ? (provocatório fica em estátua com a expressão interrogativa de sobrancelhas levantadas). Silêncio. pois é…

Pega numa bolacha e atira-a a ver se acerta na chávena do chá do pai como se faz no jogo das feiras. A bolacha cai entre o pai e a mãe e vê-se a carteira da mãe no chão. Vitor repara nela. Levanta-se.

Vitor

Mas para não dizerem que sou mal educado até vou apanhar o farelo…

Dirige-se para a bolacha e apanha-a. O pai levanta-se e sai, Vitor senta-se no lugar dele ao lado da mãe e com a boca encostada à face dela como se fosse beijá-la, (mas para a impedir de o ver a meter a mão na carteira), tira uma nota de 50 €. Enquanto se levanta mete a nota no bolso de trás das calças, e sai para o seu quarto.

Vitor

(contente) A comida estava muito boa mãe, obrigado.


O pai reaparece à porta da cozinha. A mãe olha para a carteira e depois para ele com ar apreensivo. O pai está impávido.


QUARTO DE VITOR

Vitor entra e dirige-se ao computador portátil que está em pausa com muitas janelas abertas em sites porno. Baixa as calças e senta-se na cadeira em frente ao

computador. Aparece uma janela de chat no ecrã


Helena74: Olá

Padeiro: viva

Helena74: tudo bem?

Padeiro: maravilha

Helena74: então qual é a tua hoje?

Padeiro: está na hora de nos encontrarmos

Pausa

Helena74: quando e onde?

Padeiro: hoje

Pausa

Helena74: moras mesmo no Marquês?

Padeiro: yep

Helena74: posso estar aí em 15`

Padeiro: conheces o café Rôla?

Helena74: sim encontramo-nos lá vou de casaco preto e calças brancas

Padeiro: todo de preto

Helena74: até já…….

Padeiro: já já


Vitor levanta-se, olha a secretária, fecha o ecrã do computador pega no tabaco e no isqueiro, no casaco que está em cima da cama e sai.

CENA 4              

                                                                                                 

Interior-noite

Casa de Álvaro      


Álvaro, afastado, trabalha ao computador na sua secretária que se encontra cheia de processos judiciais e símbolos da sua profissão de advogado. A mulher entra em casa e dirige-se ao marido sem mostrar o contentamento que diz

Mulher

Olá Álvaro. Portaste-te muito bem, estamos contentíssimas…fomos aceites

Álvaro

Não custou nada…

Mulher

foi o que eu lhe disse e ela disse que eu mando em ti. De toda a maneira eles estavam a merecer levar com a lei. E para a próxima já não se metem connosco...


Repara no saco do lixo no corredor. Fica muito séria, aproxima-se, debruça-se sobre a secretária e acusadora atira

Mulher

Já te disse ontem para ires pôr o lixo…

Álvaro

Esqueci-me e tenho que aca…(mulher violentamente deita um molho de processos que estão em cima da secretária ao chão)

Mulher

VAI  PÔR  O  LIXO !!!


Álvaro sai com urgência como quem foge. A mulher fica estática à espera. Ouve-se uma porta a abrir e a fechar. Álvaro volta imediatamente para verificar se a mulher está mais empática.

Álvaro

(justificando-se) Já está…

Mulher

(pega-lhe pela orelha e fala baixo ao ouvido) Se não ouves bem não precisas das orelhas, pois não?


Torce-a até ele manifestar dor e fica assim por momentos. Pára e fica a olhar fixamente e muito próximo olhos nos olhos. Ele desvia o olhar.


Álvaro

(em tom conciliador meio a medo)Tens andado nervosa, e eu também com este caso que tenho agora de violência doméstica, onde já se viu, ela é que bate nele (riso nervoso).

Mulher

Isso só existe na cabeça dos fracos. Quem não está bem põe-se.

Álvaro

Pois claro mas o ser humano ainda é muito emocional…(interrompe-se quando vê a mulher que olha para ele como se fosse começar um longo movimento que levaria a acertar-lhe o passo)

Álvaro

Vou lá fora ver se o contentor do plástico já tem espaço…


Sai sem conseguir deixar de olhar com interesse para aquela realidade…

CENA 5              

                                                                                                 

Exterior-noite / Interior-noite

Rua / Café Rôla       

Álvaro pensativo e aliviado percorre as ruas. Observa skaters fazendo as suas manobras, um casal de namorados que divertidos se riem a bom rir, um homem que paga o táxi no final da corrida - um espaço desanuviado, de liberdade. Ao passar por um café repara num casal: ela na casa dos 40, vistosa, ele de preto, sinistro. Por baixo da mesa movimentações permitem perceber intimidades. Olha o néon que anuncia “Café Rôla”. O acento circunflexo alterna entre ligado e desligado… Entra.

O café está vazio apesar de se ouvir o som de um café cheio de gente.

Álvaro senta-se a duas mesas de distância e observa o casal.

Helena pega na saqueta de açúcar, abana-a e rasga-a. Prepara-se para a despejar na única chávena que se encontra em cima da mesa. Em frente a Vitor está um cigarro pousado.

deus Vitor

(monocórdico e olhar frio)  Não faz isso.


Helena pára e fica sem saber o que fazer. Vitor olha-a fixamente. Pausa. Helena espera uma indicação de Vítor que não lha dá. A medo pousa lentamente o pacote na beira do pires como se estivesse na expectativa de uma 2ª ordem. Ganha confiança e vai pegar na chávena. Vitor pára-a com um gesto. .

Álvaro fica ainda mais curioso, chegando-se à frente.

Helena como se estivesse a ser manipulada, qual marioneta, põe-lhe o cigarro na boca e acende-o.

Com o cigarro na boca, Vitor põe as mãos debaixo da mesa e ouve-se o fecho das calças a abrir

deus Vitor

(dirigindo-se a Helena) Chupa !


Helena olha à volta. Vê Álvaro a observá-los.

Por momentos, deixa a sua posição de submissão e lança um olhar como se pudesse fazer a Álvaro o que Vitor lhe estava a fazer a ela.

deus Helena

(dirigindo-se a Álvaro) Vira-te para a parede.


Álvaro vira-se

deus Helena

(mudando de ideias) Não, olha para aqui…


Álvaro olha. Helena mete-se por baixo da mesa.

Álvaro fica a olhar sem outra expressão que a da pura observação (só vemos a cara de Álvaro durante longo tempo).

Vitor apoia a cabeça com as duas mãos e inclina-se para trás, como se nada tivesse acontecido. Helena retoma a sua posição à mesa limpando a boca com a mão como se tivesse feito o que tinha a fazer.

Nesse momento, dois homens entram no café e dirigem-se a Vitor.


Polícia 1

Polícia (mostra a identificação). Levante-se por favor. (Vitor levanta-se)

Coloque todos os seus pertences nesta mesa. (aponta a mesa ao lado)


Vitor tira dos bolsos da frente lenços de papel usados, uma pequena carteira, um isqueiro. O polícia 2 abre a carteira e tira de lá de dentro umas moedas. Olha para o polícia 1.

Polícia 1

(dirigindo-se a Vitor) É tudo?

Vitor

É tudo.

Polícia 1

Apoie as mãos na mesa e afaste as pernas.


Vitor assim faz. Polícia 1 revista-o. Do bolso de trás tira uma nota de 50,00 €. Abre-a e passa uma luz negra sobre a nota.

Polícia 1

O senhor está preso pelo furto de 50,00 aos seus pais e por suspeita de violência doméstica, furto e roubo continuados e extorsão dos mesmos.


Põe-lhe as mãos atrás das costas e algema-o. Álvaro intervém.


Álvaro

(apresenta-se) Senhores agentes o meu nome é Álvaro Estanislau, sou advogado e represento este senhor (olha para Vitor) se ele quiser (Vitor acena afirmativamente de forma quase impercetível apanhado de surpresa pelos acontecimentos)

Polícia 1

(dirigindo-se a Álvaro) Muito bem, o seu cliente furtou 50,00 € aos pais e está a ser detido numa ação coordenada pela polícia judiciária recorrendo a notas marcadas (mostra a nota). Vai ser levado para a esquadra do Marquês.

Álvaro

(dirigindo-se a Vitor) Lá estarei amanhã pelas nove horas


Vitor acena concordando. Álvaro olha Helena que está impávida e serena.

CENA 6                                                                                                                      


Interior-noite / exterior-noite

Quarto de Helena / À porta do Café Rola        


Carmen entra a cantarolar no quarto de Helena com umas roupas para devolver à mãe.

Repara no computador aberto e vê a conversa do chat de Helena74 com Padeiro. Abre uma janela de câmaras em tempo real e vai ver o café Rôla. Vê a mãe, a cena com a polícia e uma série de comportamentos que lhe parecem estranhos. Sai disparada. Chega ao Café Rôla no velho carro da mãe. Pára-o com urgência, sai e dirige-se para o café mas vai diminuindo o passo até estancar. O café que momentos antes estava vazio apresenta-se cheio de movimento. Carmen verifica o nome do café – é de facto o Café Rôla apesar de ter o acento circunflexo apagado…

CENA 7                                                                                                                           

Interior - noite                                                        

Esquadra de polícia                                              


Sala exígua e suja de esquadra. Uma mesa com duas cadeiras uma em frente à outra onde está Vitor sentado. A porta abre-se e um polícia aparece à frente de Álvaro que avança com um dossier na mão e senta-se na cadeira disponível. Pousa o dossier na mesa. O polícia sai e fecha a porta.


Álvaro

Bateram-te?

Vitor

Nada de mais…

Álvaro

É que muitos deles também são pais e não queriam o filho a roubar-lhes o

dinheiro. Ou a bater-lhes…(Pausa).  (Abre o dossier e lê enquanto folheia) “intervenção da patrulha mas a alegada vítima não apresentou queixa porque diz que uma mãe não apresenta queixa de um filho…” “vizinha afirma que o filho Vitor rouba o dinheiro aos pais para manter uma vida sem trabalhar…”(pausa mais longa)“ o queixoso que é pai do acusado concordou em colocar notas marcadas pelo método de tinta invisível com o objetivo de apanhar o suspeito em flagrante…” olha para Vítor e foi isto que te aconteceu…

Vitor

Acontece aos melhores…

deus Álvaro

Vais dizer aos teus pais que vou lá falar com eles

Vitor

Não tenho dinheiro

deus Álvaro

E vais dizer à mulher com quem estavas para assumir que foi ela que roubou o dinheiro…

Vitor

Isso é fácil mas se calhar não é isso que você quer…


deus Álvaro

Se soubesse o que queria não estava aqui a falar contigo

Vitor

Então porque é que está?


Álvaro levanta-se e coloca-se a alguma distância encostado à parede com as mãos a servirem de encosto para o rabo.


deus Álvaro

As pessoas interessam-me. EU interessa-me. A relação que tens com aquela mulher é parecida com a que tenho contigo. Uma espécie de controlo porque podemos, sem razão, apenas porque sim.

Vitor

Não gosto que me controlem…

deus Álvaro

Hoje não gostas, amanhã gostas… talvez faça parte… se ainda estás nessa fase, vais ver que isso não interessa nada.

Vitor

(percebendo que é como ele diz) Eu digo aos meus pais que passa lá, quanto à Helena tem que me trazer o computador ou tirar-me daqui…

Álvaro

Vou tratar disso (pega no dossier, dirige-se para a porta)

Vitor

De trazer o computador ou tirar-me daqui?


Ouve-se a porta a fechar.

CENA 8

                                                                                                                             

Interior-dia                                                 

Casa dos pais de Vitor – cozinha e quarto de Vitor      

                                  

Álvaro toca à porta. Pai de Vitor abre.


Álvaro

Bom dia. O meu nome é Álvaro Estanislau e sou o advogado do Vitor. Pausa

Pai

Sim?

Álvaro

E pretendo trocar algumas impressões sobre…(Chega a mãe)

Mãe

Entre, entre…

Álvaro

Obrigado


Pai afasta-se com alguma relutância para o deixar passar. Álvaro entra, respira fundo e olha à volta como que a interiorizar a energia do lugar.


Mãe

Toma alguma coisa? Acabei de fazer um cafezinho…

Álvaro

Não obrigado acabei de tomar um no café aqui ao lado.

Mãe

O Café Rôla tem um ótimo café.

Pai

O senhor doutor não veio aqui falar de café.

Mãe

Pois não mas tu é que és o culpado…eu não queria nada disto…

Pai

Querias que ele continuasse a …(interrompido por)

Álvaro

Peço desculpa mas essas questões não são o objeto da minha vinda aqui, pelo menos nessa forma.

Mãe

Desculpe. Em que podemos ajudar o Vitor?


Pai mostra-se contrariado.

Álvaro

Admitindo que lhe montaram uma cilada, que criaram as condições para que Vitor pegasse no dinheiro - que estão arrependidos

Pai

A nossa única culpa é existirmos e tê-lo posto no mundo

Álvaro

E não é pequena culpa…


Pai fica surpreendido

Mãe

E de facto não devíamos ter feito aquilo, o inspetor Luís é que nos convenceu.

Álvaro

Portanto estão arrependidos…(olha o pai que baixa os olhos. Levanta-se e começa a inspecionar a cozinha como se quisesse recriar os acontecimentos)

Conte-me portanto, em pormenor, o que aconteceu…mas já agora se pudesse ir à casa de banho agradecia…

Mãe

Claro e vamos para a sala, eu indico-lhe (começa o movimento mas é interrompida por Álvaro)

Álvaro

(olhando em volta) Mas foi aqui que ocorreram os factos…

Mãe

Sim…

Álvaro

Deixem-se estar aqui, eu encontro a casa de banho. (dirige-se para o corredor)


Pais entreolham-se.

Álvaro procurando o quarto de Vitor abre a porta de uma divisão e outra. Entra. Vê o computador portátil de Vitor pousado na sua secretária. Dirige-se a ele e levanta o ecrã. O computador inicia, mostrando os sites de pornografia e o chat com Helena74, que está on-line. Lê o que está escrito senta-se e começa a escrever fazendo-se passar por Vitor - Padeiro


Padeiro: Olá

Helena74: Eiiii , como correram as coisas?

Padeiro: Bem…

Helena74: Bem como?

Padeiro: O advogado disse-me para eu dizer que foste tu que tiraste o dinheiro e tu vais confirmar…(Pausa longa) o melhor é falares com ele liga-lhe o numero dele é

Vemos a luz do ecrã refletida na face de Álvaro enquanto acaba o chat.

Levanta-se fecha o ecrã e sai.

Ao passar pelo quarto dos pais vê a carteira da mãe de Vitor pousada em cima da cama. Dirige-se à carteira como que a tentar recriar a ação de Vitor. Estão algumas notas de 50,00 €. Pega lentamente numa delas e mimetizando a ação de Vitor põe a nota no bolso de trás.


CENA 9

                                                                                             

Interior / Exterior / Interior - Dia

Café Rola / Rua / Casa de Helena

CAFÉ RÔLA

Álvaro espera por Helena na mesma mesa em que a vira com Vitor. Está no lugar de Vitor. O telefone toca. Álvaro atende.


Helena

Olá, boa tarde, Helena Dores, o meu carro não pega e não vou poder ir aí agora…

Álvaro

Boa tarde. Coisas que acontecem, mas posso ajudar?

Helena

Acho que não, se calhar é só falta de gasolina, mas entre ir à bomba, vir e ir para aí…

Álvaro

Se quiser posso ir ter consigo…

Helena

Ainda estou em casa e…

Álvaro

Se não se importar de passar a reunião para sua casa, por mim não há problema, posso ir aí ter…

Helena

Não sei…o Vitor?

Álvaro

O Vítor ainda está na esquadra e é importante que eu fale consigo para tentar

libertá-lo…

Helena

Bem, então venha aqui a casa, fica na Rua do Almada …


CASA DE HELENA

Álvaro toca à campainha na porta do prédio.


Helena

Quem é?

Álvaro

Álvaro Estanislau


A porta abre-se, Álvaro entra. Sobe no elevador. Bate à porta do apartamento. A porta é aberta por Carmen.


Carmen

Entra a minha mãe está a arranjar-se…


Carmen volta para a sala e continua a ver televisão. Álvaro fecha a porta e fica no hall de entrada algum tempo à espera. Começa a espreitar. Carmen no sofá come pipocas e vê televisão. Na sala desarrumada observa umas calças usadas aqui, uns ténis atirados ali, pequenos montículos de roupa abandonados no transporte da lavandaria para o quarto. Folhas de papel na mesa, chávenas e copos um pouco por todo o lado…

Helena aparece, surpreendendo-o a espiar o ambiente da casa.


Helena

A olhar fixamente Álvaro (alto como se tivesse a falar também para ele) Carmen porque é que não me disseste que o doutor já chegou?


Carmen de sobrolho levantado sacrifica a sua atenção à televisão rodando a cabeça num olhar como se tentasse perceber o que lhe estava a ser dito.


deus Helena

Entra, já que viste este caos vamos para um local mais arrumado e enquanto

me arranjo falamos.


Dirige-se para o quarto dela. Álvaro segue-a. Helena senta-se ao toucador e maquia-se. Álvaro observa tudo o que pode - a roupa dentro do armário entreaberto, as caixas de maquiagem, as fotografias do fugaz momento de sucesso, as fotografias com a filha. Helena observa-o pelo espelho.


deus Helena

Chega-me esse vestido que está na cadeira e vai dizer à minha filha para ir tratar do carro


Álvaro dá-lhe o vestido e vai à sala onde Carmen se mantém como estava.


Álvaro

A tua mãe disse para ires tratar do carro

Carmen

(olha para Álvaro) Estou a ir (volta-se para a televisão sem a mínima intenção de fazer o que disse)


Álvaro volta ao quarto.

Álvaro

Não me parece que ela tenha ligado ao que eu disse…(retoma a sua observação do quarto)

Helena

O Vitor disse-me que lhe disseste para ser eu a arcar com as culpas do furto…

Álvaro

(mais interessado no que o rodeia) Sim é uma boa possibilidade de defesa…

Helena

Quando o Vitor me diz para fazer algo, eu faço (Álvaro faz uma expressão de quem está a tentar compreender) não me perguntes porquê, é assim

Álvaro

(apontando para a fotografia dela no palco) és artista?

Helena

Era, mas com o nascimento da Carmenzita achei que lhe devia passar-lhe a

ela essa nossa missão no mundo…mas falemos de ti, tenho a sensação de que te sucede a ti comigo o que me acontece com o Vitor – que não podes recusar uma ordem minha… (Álvaro mostra-se curioso).

deus Helena

Vais dizer que foste tu que furtaste o dinheiro…

Álvaro

(concordando) Sim, também furtei…


Carmen entra no quarto com o telefone na mão que estende a Helena.

.

Carmen

Um Vitor…(entrega o telefone a Helena e volta para a sala)

Helena

Estou? (Pausa) Demoro 15 minutos.


Desliga o telefone. Olha para Álvaro.


Helena

O Vitor foi libertado. Disse-me para o ir buscar. Vamos no teu carro. (Diz alto em direção à sala) Carmen despacha-te temos que sair.


CENA 10


Exterior - dia

Carro / Porta da Esquadra


No escuro de um túnel, no interior do carro vislumbra-se Álvaro e Helena à frente e Carmen atrás. Luz intensa à saída do túnel.


Carmen

Não percebo o que estou aqui a fazer…

Helena

Se queres ser uma artista tens que saber como é a vida…

Carmen

Já vi muitas pessoas a sair da prisão, de cafés, de casa…

Helena

Na televisão e no telemóvel…

Carmen

E qual é a diferença?


Não obtém resposta. Vemos Vitor à porta da esquadra que franze as sobrancelhas quando vê Álvaro com Helena e Carmen. O carro pára, Vitor abre a porta de trás e ainda do lado de fora atira a Álvaro


Vitor

Estou a ver que não perdes tempo…

deus Álvaro

Entra


Carmen que estava ao meio do banco de trás atira-se para o canto oposto. Vitor entra. O carro arranca.


CENA 11

Interior - dia

Café Rola

Estão os 4 sentados à mesa. Carmen, Helena, Álvaro, Vitor. Entreolham-se longamente com o som do Café ao fundo.


Carmen

Alguém me pode explicar o que é que se passa entre vocês?

Helena

Nada, 3 pessoas que se cruzaram no caminho da vida…

Álvaro

da existência…

Vitor

que é maior do que a vida…

Carmen

(sem perceber – irónica) e são todos filósofos

Vitor

(virando-se para Álvaro igualmente irónico) o senhor doutor pode explicar?

Álvaro

(virando-se para Helena) se a Helena quiser…

deus Helena

(dirigindo-se a Álvaro) Diz à minha filha que todos dependemos uns dos outros, mas entre nós orientamo-nos uns aos outros - sem questionar

Álvaro

(dirigindo-se a Carmen) dependemos uns dos outros, mas aqui mandamos uns nos outros

Carmen

Em mim ninguém manda…

deus Álvaro

(dirigindo-se a Vítor como que a explicar) Diz à menina para se levantar e sair


Carmen sem esperar pelo que se segue levanta-se e sai chateada .


deus Vitor

(dirigindo-se a Helena e apontando a cadeira de Carmen com a cabeça) Senta-te aqui.

CENA 12                                                                                              


Interior-dia / exterior-dia

Estúdio de casting / À porta do exterior do edifício


Vemos uma sala ampla de decoração minimalista onde atrás de uma secretária se vê a inscrição “ESCOLHO” Agência de Casting.

Carmen está tranquilamente sentada de perna cruzada e posição lateral como costuma ver nos programas de televisão, num local espaçoso onde deambulam diversas pessoas com ar sofisticado, apressado ou concentrado. Reina o individualismo. Trocas de olhar entre as candidatas denunciam nervosismo e/ou competição, buscando cumplicidades, apoio mútuo, apreensão, avaliação, provocação.

Da sala de audições sai uma candidata com ar triunfante que pode ser apenas uma máscara para a desilusão.


Rececionista

(chama) Carmen Dores !


Carmen levanta-se e com um gesto de cabeça afasta o cabelo, faz um pequeno arranjo à roupa e dirige-se com andar de modelo em passerelle para a porta de onde tinha saído a candidata anterior. Dentro da sala estão 3 pessoas: o responsável pelo casting, uma anotadora e um operador de câmara.

Responsável

(algo acelerado) Bom dia, o meu nome é Miguel Dias, sou o responsável pelo casting. (Olhando para a assistente para ela prosseguir)

Assistente

Carmen Dores?

Carmen

Sim

Assistente

Não tem agência?

Carmen

Não, não tenho agência.


A assistente faz anotações.

Responsável

Carmen, vou pedir-te para executares algumas tarefas. Após ouvires a minha instrução peço que aguardes 5 segundos até a executares e quando terminares…(corta)


SEQUÊNCIA DE MONTAGEM de excertos do casting


Carmen sai da sala sem ser possível discernir do resultado da sessão.

Helena espera-a de pé a um canto, apreensiva. Esboça um sorriso nervoso que é imediatamente estancado pela imagem da filha.

Carmen ao longe despede-se da rececionista e vem ter com a mãe.

Helena

(entre dentes) Essa roupa não te favorece…


Começam a caminhar em direção à saída algo apressadas.


Carmen

A que tu querias faz-me gorda, se calhar dava-te jeito…

Helena

Como se uma mãe quisesse o mal da sua filha…

Carmen

Pensei que ias dizer que não há mal nenhum em ser gorda (olha a mãe de lado)

Helena

Não sou eu que estou a ser avaliada, és tu!

Carmen

Quando foste tu não tiveste grande sucesso…

Helena

Até tive…

Carmen

Nota-se

Helena

Agora é a tua vez, …(insistente na questão da roupa fazendo pequenas pausas entre as palavras e marcando-as) Mas    Essas   Roupas    não te favorecem…


Chegadas à saída vêm Vítor que as espera. Carmen estanca. Helena após um movimento que parece acompanhar o de Carmen, vai ter com Vítor. Carmen fica à espera a alguma distância olhando-os de quando em vez, mostrando-se cada vez mais impaciente. Helena olha para a filha como se estivesse dividida. Carmen fixa-a. Helena volta-se para Vítor e continua a conversa. Olha novamente para Carmen que a pressiona pela linguagem corporal a despachar-se. Helena volta-se para Vítor. Carmen vai embora, decididamente enervada.



CENA 13                                                                                                              


Interior - Fim do dia

Café Rôla


Vemos o néon do Café Rôla. Carmen vinda da rua, entra. Prepara-se para ocupar a mesa onde a mãe esteve com Vitor, quando repara em Álvaro que ocupava o mesmo lugar na outra mesa. Carmen crava-lhe os olhos e após uma curta pausa avança para ele decidida.

Carmen

Isto é alguma perseguição? agora onde quer que vá tenho que levar com um de vocês?

Álvaro

Perseguição a quem?

Carmen

A mim, à minha mãe…

Álvaro

E onde está Helena?

Carmen

Deixei-a ainda agora com… (pega no telefone e faz uma chamada)

Mãe? Estou aqui no Café Rôla com o Álvaro, isto é alguma perseguição? Onde estás? (tempo para a resposta) Ai sim? Então também vou para aí e levo o Álvaro

Álvaro

O que foi?

Carmen

(fazendo uma pausa para ver como dizer, sai-lhe) A Helena disse para vires comigo ter com ela a nossa casa.


Metodicamente, Álvaro arruma a chávena de chá e um prato vazio, pega no casaco de onde tira um porta-moedas e de lá 2 euros que põe em cima da mesa. Carmen observa o efeito das suas palavras. Álvaro levantando-se olha para Carmen como quem diz “estou pronto”.

CENA 14                                                                                                

Interior - Noite

Sala casa de Helena


Carmen entra em casa acompanhada de Álvaro com cara de como quem diz –“toma lá que já almoçaste”.

Carmen

Mãããeeeee…

Helena

(da sala) sim?


Carmen acompanhada de Álvaro entra na sala de estar onde sentados nos sofás estão Helena e Vitor que de pés em cima da mesa fuma espraiadamente. Álvaro senta-se ao seu lado e observa-o a fumar. Vítor olha-o. Helena observa. Carmen de pé ainda com as chaves na mão está boquiaberta com a naturalidade com que os 3 lidam com aquela estranha situação, como se estivesse destinado a acontecer, como se se conhecessem desde sempre…


Carmen

(incrédula) Vocês já se conhecem há muito tempo?


Vítor olha-a com um leve sorriso provocador. Álvaro continua a olhar para Vítor e responde

Álvaro

Não.

Também vou fumar um cigarro.


Vítor olha-o e deixa de sorrir. Álvaro mantém o olhar colado em Vítor como se quisesse absorvê-lo. Vítor acende um cigarro e estende-lho. Helena observa impávida. Carmen como que vencida pelos acontecimentos deixa-se cair numa cadeira sem tirar os olhos dos acontecimentos. Silêncio.

Álvaro

(como um investigador olhando o cigarro e expelindo fumo vira-se novamente para Vitor) Porque é que fumas?

Vítor

(fazendo uma expressão de desinteresse) Se queres que te diga nem sei…

Carmen

Se calhar é para teres consciência de que respiras…


Vitor olha-a como se ela não tivesse aberto a boca e dá mais uma passa.


deus Helena

Álvaro, apaga o cigarro (Álvaro vai para apagar o cigarro) - (mudando de ideias) ou então já que começaste, acaba. (Álvaro pára o movimento e volta para a posição em que estava).


Carmen está espantada e na tentativa de que alguma coisa faça sentido diz


Carmen

Então vamos ver se percebo…O Vitor gamou 50 paus aos pais e foi tramado por eles. Foi dentro. Tu (virando-se para Álvaro) quando o prenderam estavas lá por acaso e foste defendê-lo, isto tudo enquanto a minha mãe fazia de puta e chupava o Vitor…(põe uma expressão interrogativa)

Álvaro

A mim interessam-me as pessoas e as suas motivações (olhando para Vítor e tirando os 50,00 furtados em casa dos pais dele do mesmo bolso de trás que Vítor, mostrando-lhos) e não percebi bem porque tiraste o dinheiro à tua mãe… percebo melhor porque fumas…

Vítor

Para fumar é preciso dinheiro…e para comer e para…(tira a nota da mão de

Álvaro - dirigindo-se a Helena e entregando-lhe o dinheiro) por falar nisso vai comprar qualquer coisa para comermos


Álvaro fica a processar a informação. Carmen apesar de continuar incrédula adapta-se a este “new normal” com um pequeno agitar de cabeça como se estivesse a encaixar uma novidade muito estranha (wtf). Helena levanta-se e sai.


CENA 15                                                                            


Interior - Dia

Cozinha de Casa de Helena 


Quotidiano. Helena escorre a água da massa cozida enquanto Carmen põe os copos na mesa onde já se encontram os pratos e os talheres. O seu telefone pousado no balcão toca, ela vendo a origem faz uma pausa apruma-se e atende com uma calma encenada.


Carmen

Estou?


Esta forma de atender chama a atenção de Helena que pára com o pano na mão usado para pôr o tacho na mesa, a olhar fixamente a filha. Carmen olha para Helena de relance como se não quisesse ser importunada. Helena enrijece os braços para baixo e sobe sobre os bicos dos pés como quem diz “eu também tenho o direito de saber”. Carmen olha novamente para ela mas conciliadora faz um gesto de calma com a mão


Carmen

Mas pode dizer-me porque razão…ou razões?


Helena bate com os braços nas laterais do seu próprio corpo em sinal de raiva. Após uma pequeníssima pausa põe-se a gesticular para Carmen, puxando a sua própria roupa como quem diz “eu bem te disse – foi por causa da roupa” Carmen abre os olhos a repreendê-la


Carmen

(num tom de voz interrogativo e calmo em forte contraste com a sua linguagem corporal) Mas terá sido por causa da roupa que escolhi, é que se calhar…(à medida que ouve a resposta põe-se a dizer que não à mãe com o dedo da mão levantado) sim, sim percebo (desviando-se da mãe e pretendendo encaminhar-se para o quarto. Helena agarra-a impedindo-a de seguir caminho.) Boa tarde.

Desliga. Silêncio.

Helena

Eu avisei-te

Carmen

Não     foi       da roupa…

Helena

Como se eles te fossem dizer que foi…

Carmen

Qual era o problema? eles também devem querer que melhoremos…

Helena

Então porque é que não te aceitaram? (mais calma)

Carmen

Disseram que as escolhidas estavam mais de acordo com o perfil,  que tinham mais experiência…bláblábláblá…


Helena faz uma pequena pausa olhando fixamente para o chão à procura de solução. Pega no seu telefone que estava em cima da mesa e faz um telefonema.

deus Helena

Álvaro? (olha para a filha e afasta o olhar logo de seguida olhando para a janela da cozinha em sentido ascendente) Quero que trates de um assunto…

CENA 16                                                                                       


Interior - Dia

Quarto de Helena / quarto de Carmen


Helena arruma o seu quarto. Apura o ouvido, aproxima-se da parede divisória do quarto de Carmen e ouve-a a chorar baixinho. Dirige-se para o quarto da filha. Bate à porta e entra. Carmen em lágrimas pega com violência nas roupas do guarda-fatos e atira-as para o chão. Helena vai em direção dela para a abraçar e é repelida.

Carmen

(continuando o que estava a fazer) Vou dar esta merda toda e deixar de ser crente…

Helena

(solícita) Então…É só um momento mau…

Carmen

Um não, 10, 20 (pára e olha nos olhos Helena) uma vida de momentos maus…falhanço atrás de falhanço !

Helena

Faz um esforço… por ti

Carmen

(continua a pôr roupas num monte agora mais calma passando da auto flagelação para o ataque à mãe) por mim ou por ti? (pára à espera da resposta)

Helena

Claro que é também por mim, eu quero o melhor para a minha filha…

Carmen

Queres o melhor para mim desde que seja na área que TU queres e em que falhaste, queres usar-me para ultrapassares o TEU fracasso…

Helena

(mudando ligeiramente para o mesmo registo de Carmen) Eu abandonei a minha carreira para poder criar-te, para estar contigo!

Carmen

Não mãe, tu não tiveste hipótese e eu servi-te de consolo, de justificação…

Helena

Ligeira pausa (calma e conciliadora) Mas não é isso que os filhos são? O nosso consolo e justificação?


Ficam a olhar uma para a outra. Abraçam-se longamente. Helena sai do abraço, agarra-a pelos ombros e olha-a nos olhos


Helena

E agora precisamos de nos alimentar…


CENA 17                                                                             


Interior - Fim do Dia    

Supermercado


Carmen de óculos de sol para esconder o facto de ter estado a chorar e com uma roupa demasiado vistosa (casaco de peles, calças prateadas e saltos altos) acompanhada da mãe no mesmo registo, entram no supermercado conduzindo cada uma o seu carrinho das compras em modo de passerelle como quem diz “somos as estrelas do pedaço”. As compras são feitas em grande estilo (câmaras lentas) – bolachas, barras de chocolate a cereais vistosos a serem atirados para dentro do carro de compras de Carmen, comida processada, que engorda e faz mal. O telefone de Carmen toca, ela pára e atende.

Carmen

(interrogativa) Sim? (pausa) (afirmativa) sim… (à medida que vai ouvindo Carmen tira os óculos, olha para Helena e vai abrindo muito os olhos - Helena responde da mesma forma) Muito obrigada, eu depois ligo  (abraçam-se aos saltos e gritos de felicidade diametralmente oposta à depressão prévia - grita) FUI ACEITE FUI ACEITE FUI ACEITE (Helena junta-se e dizem em uníssono) FUI ACEITE FUI ACEITE FUI ACEITE


Param a olhar uma para a outra, Carmen com as mãos na cabeça, Helena com as mãos na boca.

Carmen

(“cai-lhe a ficha” - percebe) Foi o Álvaro (emenda em tom adivinhatório) foste tu…


Helena abraça-a e abandonando os carros de compras encaminha-a para a zona da comida Bio e Saudável…


CENA 18                                                                          

Interior - Noite

Cozinha de casa de Helena


Entram na cozinha entusiasmadas e barulhentas cheias de sacos com frutas e legumes

Carmen

…não, não, fazemos uma quiche de nabo sem burro…


Fica a olhar fixa para Helena. Helena percebe a piada e riem-se a bandeiras despregadas…

Helena

(imitando Scollari?) e o burro sou eu?

Mais risota.

Carmen

…esperaespera…


Sai. Helena vai dispondo os ingredientes na mesa da cozinha. Carmen volta cheia de maquiagem que atira para cima da mesa.


SEQUÊNCIA DE MONTAGEM – sempre a imitar que estão num programa de culinário televisivo.


Carmen em versão Punk olha de frente para a câmara

Carmen

(com voz rouca) E agora cortamos a cebola…(começa às facadas a uma cebola)


Mais risota. Helena faz um carrapito, pinta de vermelho muito garrido os lábios de uma só pincelada (fica tudo torto). Lambendo sexualmente o cozinhado


Helena

E com um pouco de natas…tudo melhora


Mais risota.

Põem a comida na mesa. Sentam-se. Acalmam-se e preparam-se para comer.


Carmen

Então diz-me lá… O Álvaro disse-lhes o quê?

Helena

Ainda não falei com ele…mas não lhe custou nada…

Carmen

(pausa)(provocadora brincalhona)Porque    és    tu    que     mandas nele?...(fica sem resposta) O que é facto é que me safou. Começo a ficar interessada neste vosso estranho registo, (provocadora) parece que funciona…


Helena recebe uma mensagem. Olha para Carmen.


Helena

Pois funciona…e eu tenho que ir…

Carmen

Ir para onde?

Helena

(levantando-se sem olhar para Carmen) vou ter com o Vítor.


Sai.

Carmen fica boquiaberta seguindo a mãe com o olhar. Pausa. Volta-se para o prato olha para a comida, recompõe-se, alegra-se e continua a festa sozinha em modo banquete.


CENA 19                                                                                                         

Interior - Noite

Garagem do edifício da casa de Helena  / Casa de Álvaro


Porta do elevador. O mostrador mostra 3, 2, 1, R/C, Cave. A porta abre-se. Helena sai descontraída e ainda divertida. Abre a porta que dá para a garagem e entra. Vitor está encostado ao velho carro de Helena a fumar. Helena dirige-se a ele. Ele abre a porta.

deus Vitor

Senta-te


Helena senta-se no lugar do condutor. Dá um jeito ao cabelo à espera de indicações.

deus Vitor

(camara subjetiva de Vitor em picado olhando o decote de Helena) Tira a camisola.


(camara subjetiva de Helena em contrapicado olhando Vitor - tira a camisola).

Vitor tira o cigarro da boca e lentamente encaminha-o para a boca de Helena que fica com ele abandonado na boca (que se mantém pintada à toa da brincadeira na cozinha), olha para cima, nos olhos, frontal, segura.


Corta.


Helena decidida e como quem deixa para trás uma coisa sem importância, encaminha-se para a porta que dá acesso ao elevador. Tem a maquiagem esborratada, está suada e algo desgrenhada.


ESCADAS E ELEVADOR DO PRÉDIO DE HELENA / CASA DE ÁLVARO

(montagem paralela)

Helena pega no telemóvel e liga a Álvaro.

Álvaro na cozinha sente o telefone que está no bolso das calças a vibrar e atende

Álvaro

Estou?

deus Helena

Sim? Álvaro…

Álvaro

Olá Helena

(Nota: O diálogo a partir daqui é o mesmo do início da cena 4 com a mulher)

deus Helena

Olá Álvaro. Portaste-te muito bem, estamos contentíssimas…fomos aceites

Álvaro

Não custou nada…

deus Helena

foi o que eu lhe disse e ela disse que eu mando em ti. De toda a maneira eles estavam a merecer levar com a lei. E para a próxima já não se metem connosco...

(termina o diálogo do início da cena 4 com a mulher)

deus Helena

(pequena pausa de 2 passos) Olá Álvaro. (pausa de 1 passo) Portaste-te muito bem, estamos contentíssimas…fomos aceites

(pára a montagem paralela)

Álvaro olha para o chão como se estivesse a concentrar-se na audição.

Mulher entra na cozinha (anda da mesma forma que Helena) e olha para ele. Ele segue-a com o olhar enquanto ela, de um lado para o outro, pega numa chávena de um armário, no café solúvel do outro, tira uma colher da gaveta..


deus Helena

Estou?

Álvaro

Sim, sim…não custou nada (repete mecanicamente) (a voz de Helena parece que vem da sua mulher “ foi o que eu lhe disse e ela disse que eu mando em ti. De toda a maneira eles estavam a merecer levar com a lei. E para a próxima já não se metem connosco...”)


Álvaro olha para o saco do lixo, baixa o telefone lentamente como se estivesse num sonho e olha para a mulher que lhe diz


Mulher

Já te disse ontem para ires pôr o lixo…


CENA 20                                                                                                                    


Interior - Dia

Tribunal – Gabinete de Álvaro e Sala de audiências


Álvaro sentado atrás de uma antiga e grande secretária, num antigo e clássico gabinete, vai consultando o processo. Vítor mostra-se algo nervoso pela forma como vai lentamente esfregando e apertando as mãos. Está sentado numa poltrona do outro lado da secretária.


deus Álvaro

(pousando o processo, olhando Vitor enquanto se encosta às costas da cadeira) Vais dizer na audiência que eu também furtei cinquenta euros à tua mãe…

Vitor

Isso não faz sentido nenhum, então vou dizer que roubei uma nota de cinquenta euros e que o meu advogado também, quando nem sequer existe qualquer suspeita?

deus Álvaro

É a verdade, para além disso digo isto no melhor interesse do meu cliente…


Vítor fica boquiaberto e incrédulo a olhar para Álvaro.

Vitor

Queres tomar o meu lugar? Para mártir basta um…

deus Álvaro

Já te disse o que tens de fazer.

Vitor

Tu gostas é de lançar a confusão não é? Primeiro era a Helena que confessava um furto que não cometeu, e que portanto era uma mentira, agora sou eu que te acuso de um furto que sendo verdade ninguém vai acreditar…

deus Álvaro

Podes pôr-me no âmbito do cientista social - ou existencial - se bem que a confusão é só a falta de discernimento sobre os factos

Vitor

(a ver se percebe) Os factos existem... ou existiram... se não os entendes é confusão se os entendes... “no passa nada”…

deus Álvaro

Tudo “passa nada” (passa a nada - em português)


Vítor após uma pausa para digerir levanta-se (Som ambiente. Música de cordas – piano/violinos – com volume em crescendo daqui para a frente). Álvaro levanta-se logo a seguir - dirigem-se para a porta do gabinete, saem em direção aos grandes corredores operáticos e entram no eloquente cenário da sala de audiências.


SALA DE AUDIÊNCIAS

(O julgamento é visto como uma opera – som é só música – Álvaro em pé em contrapicado expõe, Vítor sentado ouve-o e olha para cima - para ele. O juiz assiste. Álvaro senta-se. Vítor levanta-se e tenta a eloquência que se vai desvanecendo enquanto um inalterado impávido e sereno Álvaro assiste. O juiz vai intervindo cada vez mais interrogativo esmiuçando em direção à verdade dos factos.)

A música é brutalmente interrompida pela voz trémula mas incisiva de Vítor.


Vitor

FUI EU!


Freeze. Ausência de som. Álvaro pisca os olhos. Olha Vitor. Vitor trémulo e inseguro retribui o olhar. Começa a ouvir-se a voz do juiz muito ao fundo em crescendo“ nascido a vinte e seis de dezembro de mil novecentos e setenta e quatro (volume normal) condenado a 3 meses de prisão efetiva com início imediato. Som do martelo.


CENA 21                                                                                                         


Interior - Noite

Casa de Álvaro


No hall de entrada de sua casa vemos Álvaro a entrar. Pousa as chaves no móvel lá existente. Na sala ouve-se a televisão. Olha para a sala e vê a cabeça da sua mulher de trás no sofá. Vê televisão.


Álvaro

Boas !!!


A mulher vira-se para ele, está a comer uns aperitivos.


Mulher

Queres ver um filme?


Álvaro entra e aproxima-se. A mulher está com uma roupa sedutora. Ele repara e tenta escapar


Álvaro

Tenho que fazer uma contestação para amanhã…

Mulher

E eu queria fazer uma constatação para hoje…

Álvaro

(ri-se) e que constatação seria essa ?

Mulher

(insinuando-se) ainda não sei, para agora é de que não queres ver um filme (pausa) comigo.

Álvaro

Amanhã estou mais livre…(deslocando-se muito lentamente para o corredor)

Mulher

(olhando para trás, para ele, sempre sentada no sofá – Álvaro pára quando ela começa a falar) Amanhã podemos não estar cá, ou não ter vontade, tu vontade já não tens, aliás acho que nunca tiveste, vais fazendo o jeito e até agora ainda pensei que fosse de mim, que não te despertava desejo, mas cada vez mais acho que simplesmente não tens desejo suficiente por mulheres e duvido que tenhas por homens (desviando o olhar dele e reflexiva para si própria) aliás possivelmente não tens qualquer tipo de desejo…(voltando a olhar para ele com ar de surpresa) tu se calhar não existes…


Álvaro retoma o sentido do corredor, mais pesado. Entra no seu escritório. Olha-se longamente no espelho como se tentasse ver para além do seu reflexo. Toca a cara ao de leve como se estivesse a ter contacto consigo próprio pela primeira vez, sempre olhos nos olhos com a sua imagem. Afasta-se e senta-se à secretária, estático, a pensar. Começa lentamente a apertar a carne do braço para sentir. Não satisfeito pega numa caneta de tinta permanente e vai lentamente perfurando a carne do braço onde se vai misturando o sangue que sai com a tinta da caneta. A sua expressão é perfeitamente impávido e indolor. Olha um ponto à sua frente como se constatasse algo que já sabia – a sua distância do humano.

Abre o laptop que está em cima da secretária. Abre a página do chat com Helena. Faz log in como Padeiro, tentando e falhando 2 ou 3 vezes a palavra passe até que entra.Helena74 está on-line.


Padeiro : Olá Helena

Helena74: Padeiro…

Helena74: estou a ver que as coisas correram bem no tribunal…

Padeiro: estás a falar com um novo ser

Helena74: não me digas que o anterior era mau…

Padeiro: já passamos essa fase do bom e do mau

Helena74: do lobo e da capuchinho vermelho? hihi

Padeiro: queria estar contigo outra vez

Helena74: para um novo ser esses são velhos hábitos

Padeiro: para um novo ser é uma novidade

Helena74: boa…

Helena74: então no mesmo sítio à mesma hora

Padeiro: em que sitio e a que horas?

Helena74: já me estava a escapar que sendo um novo ser desconheces o teu passado…

Helena74: NA GARAGEM DO MEU PRÉDIO às 23…

Padeiro: ok

Padeiro: levo uma venda, não quero que olhes para mim…


Desliga sem esperar resposta.


CENA 22        

                                                                                                  

Interior - Noite

Garagem do edifício da casa de Helena


Porta do elevador. O mostrador mostra 3, 2, 1, R/C, Cave. A porta abre-se. Helena agarra-se ao roupão que trás vestido. Sai decidida. No puxador que dá acesso à garagem vê uma venda que põe nos olhos. Abre a porta e entra na garagem. Pára à espera. Silêncio. Após 15 segundos levanta a venda e vê luz nos arrumos e com a venda meia posta para lhe permitir olhar para o chão avança para a luz. Os seus pés param exatamente à entrada, na linha da soleira. Partindo dos seus pés percorremos as prateleiras dos arrumos que mostram os símbolos do decurso de uma vida – o berço de Carmen, o baloiço de madeira, a cadeira alta, a árvore de Natal – Álvaro encostado da parte de dentro da ombreira da porta, pega na mão de Helena


Helena

Qual é…


Álvaro silencia-a pondo-lhe a mão na boca. Pega numa segunda venda e coloca-a sobre a boca dela cerimonialmente. Helena estanca. Ele olha-a com curiosidade, longamente, como se esperasse algum estímulo para a ação. Repara no bico do seio ereto por detrás do casaco de pijama de seda e mais por curiosidade do que por outra coisa, muito lentamente toca-lhe com a ponta do indicador e vai pressionando-o para baixo até que a pressão o faz saltar como uma mola para cima. Helena tira repentina e bruscamente a venda dos olhos em grande plano frontal.

Caracterização das personagens

Carmen Dores e Helena Dores são filha e mãe, vivem num T2 antigo na cidade do Porto de onde são naturais e sustentam-se de uma pequena reforma da mãe e trabalhos pontuais. Possuem um velho carro.


Carmen Dores tem 26 anos e desconhece-se quem seja o pai. Fez o 12º ano. É emocional e expressiva e a forte relação que tem com a sua mãe assenta na projeção que esta exerce sobre si, pretendendo ver na filha a estrela que a própria nunca foi. Este desígnio imposto não lhe é desagradável e tem seguido esse objetivo com o apoio e ajuda de Helena. Tem tido alguns namoros pontuais com o máximo de 1 ano de duração mas dá sempre primazia ao objetivo de ser uma estrela, o que vai minando essas relações.


Helena Dores tem 48 anos, vive com a sua filha Carmen a quem dedicou toda a sua vida. A maternidade ocorreu no momento em que começava uma ténue carreira musical, tendo ainda disfrutado do sabor do sucesso. Tendo-se dedicado a ser mãe, a carreira artística foi projetada na filha e dedica-se desde então a tentar fazer com que Carmen vingue nessa área. Vai tendo casos pontuais mais sexuais do que emocionais, e o facto de não saber quem é o pai de Carmen nunca a afetou.


Vítor Soares, 46 anos, vive em casa dos pais por não ter capacidade para se autonomizar. Os pais foram emigrantes em França onde Vitor aprendeu a profissão de padeiro, que exercia sem gosto. Retornaram os 3 a Portugal há 7 anos e vivem no Porto por imposição de Vitor que considerava a terra original demasiado pequena para as interações de que necessita. O seu emprego favorito é viver sem trabalhar, recorrendo a subsídios e explorando os pais tanto quanto pode, recorrendo a todo o tipo de esquemas que incluem a violência. Grande parte da sua vida é passada a consumir pornografia on-line e a encontrar-se sexualmente com quem também voga esse mundo. É dado a vícios que consomem todo o dinheiro, que nunca é suficiente. Fuma imenso, consome álcool e drogas.


Álvaro Estanislau, 32 anos, advogado, vive com a mulher num apartamento de classe alta no centro da cidade do Porto. Desenvolveu um forte interesse e curiosidade pelas pessoas ao ponto de se descuidar nas relações interpessoais pela posição mais observadora do que participativa o que se aplica à relação com a esposa, que por sua vez retalia psicologicamente de forma violenta raiando e por vezes tocando o físico. Este perfil é exacerbado pelo desinteresse sexual que se confunde com a sua indefinição de género.


g) Principais linhas de ação, personagens, ambientes e contexto.


Helena, Álvaro e Vitor são os primeiros humanos que tateando uma nova existência alternam entre 2 dimensões – ora Homem, ora Deus.

Como contraponto, a emocional e humana Carmen permite aferir esta realidade por comparação. As suas reações dão o tom sobre como seria a reação humana, centrada nas emoções e na Razão.

A linha de ação fundamental é o percurso de Carmen, que graças às interações com os “proto-deus” Álvaro, Vitor e Helena passa do fracasso constante ao sucesso e estrelato. Esse trajeto vai ganhando forma graças à gradual adesão de Carmen ao funcionamento dos “proto-deus” acabando por integrá-los. A visibilidade que a sua carreira terá acaba por ser um meio de difusão dessa nova forma de Ser e será responsável pela sua difusão em grande escala.

Podemos ainda estabelecer linhas de ação que decorrem das características dos personagens e interações baseadas em pressupostos bem estabelecidos::


Álvaro (enquanto Deus) comanda Vitor  (enquanto Humano).

Esses comandos têm por base a curiosidade sobre o Outro e recorre a um processo de mimetização…

Vitor humano reage ao comando do Deus com rebeldia sofrendo as consequências e concretizando uma espécie de auto martirização.


Vitor (enquanto Deus) comanda Helena  (enquanto Humano)

Esses comandos têm por base o poder pelo poder sobre o outro.

Helena humana reage como vítima oprimida mas não reativa.


Helena  (enquanto Deus) comanda Álvaro (enquanto Humano)

Esses comandos têm por base a intuição, que se vai adaptando e testando em função das circunstâncias.

Álvaro humano reage vogando os acontecimentos sem direção.


Carmen é testemunha destas interações e chama a si a confrontação com a estranheza humana de comportamentos que não seguem padrões emocionais e/ou racionais praticados pelos 3 “proto-deus”. Tem com Helena uma relação mãe – filha de índole humana.


Gráfico do desenvolvimento das relações homem-deus em cada personagem e os níveis de interação ou interpenetração entre si:


A instituição por repetição cíclica destas relações pretende permitir o estabelecimento de um ambiente de acolhimento de ações que por não implicarem os nexos de causalidade habituais devem gerar estranheza.

Outro nível de apreensão parte de características bem definidas dos personagens que permita a diferenciação comportamental. Esta pretensão é concretizada por uma marcada tipificação para cada uma das personagens. Mais uma vez Carmen será o recurso para contraponto.


Tipificação das personagens:

Helena (filha de Zeus) tem características clássicas:

- a mãe;

- o objeto sexual.

Vitor incorpora uma certa modernidade:

- o vilão;

- o vicio hedonista.

Álvaro representa o contemporâneo:

- a indefinição de género;

- a curiosidade sobre o outro, à distancia.

Carmen é a humana com espectativas e objetivos, parte integrante da dinâmica de construção do que é o Ser humano

- pouco racional e muito emocional,

- uma espécie de denominador comum aferidor.


Posteriormente existirá uma crescente integração por adesão de Carmen ao Ser deus que se irá desenhando e consolidando assente no tipo de relações em cima estabelecidas, que poderão diluir-se e/ou integrar novos personagens/intervenientes decorrentes desse desenvolvimento do projeto


Os ambientes mais marcantes são a casa de mãe e filha e o Café Rôla ou Rola (dependendo da ativação ou não da luz néon do assento circunflexo).

A casa de Helena e Carmen é o espaço uterino e um magneto para onde a ação é atraída. É a Casa - o lugar reconhecível, identitário, evocativo da segurança, preservação, sobrevivência.

O Café Rôla ou Rola representa o espaço público - com as nuances do Rôla que remete para a ave/natureza enquanto aceitação do inato, e o Rola, manifestação do empreendimento humano que recorre a processos complexos de interação com o fito de que se avance para a persecução d´O objetivo comum - o estabelecimento das condições necessárias para a assunção do estádio em que as limitações deixam de o ser…


Estabelecida esta respiração, uma narrativa despretensiosa e ilustrativa do quotidiano permitir-se-á ser instrumento simbólico, metafórico e exploratório do que poderá sermos Deus…

Don´t take it personally.